




Os dados do Censo 2022 apontam que a população indígena do Brasil chegou a 1.693.535 pessoas, o que representa 0,83% do total de habitantes, ou seja, os indígenas compõem a menor parcela da população do país em termos numéricos. Entretanto, apesar de serem numericamente poucos em comparação com a população total, caracterizam-se por uma multiplicidade de grupos e línguas, cerca de 160.
Quando pensamos na situação sanitária desses grupos, especialmente nos últimos anos, nos deparamos com notícias que indicam que os recursos destinados pelo governo federal para a assistência de saúde à população indígena caíram gradualmente, especialmente entre os anos 2019 e 2022, quando também fomos assombrados por reportagens que denunciavam mais uma vez o genocídio dos povos originários.
Pensando nisso, buscamos textos que recuperassem a história da relação entre as comunidades indígenas de Santa Catarina, o hiv e a aids pensando nos processos de doenças com processos experienciais e como suas manifestações dependem de fatores sociais, culturais e psicológicos, os quais operam em conjunto com processos psicobiológicos.
Nesse percurso, nos deparamos com um artigo (acesse na íntegra AQUI) do antropólogo Flavio Braune Wiik (professor de Antropologia da Universidade Estadual de Londrina). Resgatamos, abaixo, detalhes do texto que julgamos indicar uma narrativa, ainda incipiente, da ligação entre uma comunidade indígena de Santa Catarina e a aids, relação que se estabelece em 1988.
Mas antes, destacamos um trecho inicial do texto de Flavio que também reverbera aqui no ESMUC: “as representações que as pessoas têm a respeito do corpo, da corporalidade e de processos corporais degenerativos – tais como as doenças – estão imbuídas das experiências que adquirem no mundo em que interagem. Em virtude disso, corporalidade, sociedade e agentes externos macroconjunturais estão interligados, formando uma tríade”.
Resgatamos então a história: o primeiro caso de aids na população indígena do Brasil, foi notificado em 1988, no estado de Santa Catarina, em um momento de transformações sócioeconômicas desencadeadas pela construção da Barragem Norte e exploração de madeiras nas terras Xokleng, situada a cerca de 260km a noroeste de Florianópolis. Flavio explica que “Em sociedades como a dos Xokléng, em que o individualismo, o capitalismo e a biomedicina – ou medicina ocidental alopática – não são soberanos, a busca pela origem e por agentes etiológicos das doenças não se limita ao corpo enfermo. Nessas sociedades, à origem da desordem física individual associam-se também desordens e mudanças que estão ocorrendo no universo social, político e econômico em que se dão as relações sociais”.
Dessa forma, as narrativas sobre a aids, naquela comunidade, aparecem ligadas à construção da barragem e também ao abandono dos preceitos da Assembléia de Deus (desde os anos cinqüenta, componentes da cultura Xokléng e das formas de organização social têm sido justapostos e reformulados à luz do cristianismo – que foi introduzido entre eles por missionários da Igreja Pentecostal Assembléia de Deus), uma vez que após a inundação, a comunidade precisou se mudar e lidar com o desmatamento, a exploração ilegal de madeira e os conflitos com posseiros e fazendeiros. As fissões políticas provocadas pela barragem fizeram com que a sociedade indígena se dividisse em dois grupos, a aldeia Sede e a aldeia Cutia.
Nesse cenário, emerge a narrativa da doença na comunidade: em 1988, uma indígena da aldeia Cutia foi levada para a Casa do Índio da FUNAI em Curitiba, pois estava doente. Lá, o vírus foi detectado e ela morreu pouco tempo depois. Seu companheiro também foi chamado para realizar os testes e confirmou-se o diagnóstico. Os funcionários da FUNAI, apesar de preocupados com o possível espalhamento do hiv entre os Xokléng, não tomaram, de início, nenhuma medida profilática e a informação da presença da doença entre a comunidade foi divulgada para a imprensa, que tratou o assunto de acordo com um viés preconceituoso, característico daquela época. A publicação das primeiras notícias fizeram com que os Xokléng fossem alvo de inúmeras acusações, ridicularizações e discriminações perante a sociedade nacional, seus vizinhos e outros grupos indígenas. Com a exposição da mídia, o companheiro da indigena sofreu várias sanções sociais e deixou a Cutia, falecendo alguns anos depois.
Como enfatiza Flavio, dada a centralidade do papel do corpo, da corporalidade e dos processos corporais degenerativos na sociedade Xokléng, foram as experiências e a decorrente construção de modelos interpretativos etnomédicos acerca da “aids” que viabilizaram a internalização e a objetificação das radicais mudanças e rupturas sofridas em seu universo a partir da construção da barragem.
Para o antropólogo, a construção “aids” pelos Xokléng mostrou como as pessoas criam significados subjetivos e específicos para uma pandemia, ao transformá-la a partir do que vêem e experimentam dos casos particulares da doença. Ou seja, a suposta universalidade patológica da doença é alterada e relativizada por intermédio de processos sociais dialéticos de incorporação e externalização da experiência coletiva dos fenômenos da doença com um todo.
Por Camila de Almeida lara
Doutora em Linguística (Universidade Federal de Santa Catarina) e graduada em Línguas e Literaturas de Língua Portuguesa e Inglesa. atualmente, realiza pós-doutorado no programa de pós-graduação em linguística da ufsc. Seus estudos situam-se no âmbito geral da Linguística Aplicada Contemporânea e têm como tema principal a arqueogenealogia foucaultiana, especialmente o discurso, a biopolítica e à produção de subjetividades. Especificamente, suas pesquisas recentes baseiam-se em discussões sobre os dispositivos da aids e têm como objetivo problematizar a vida a partir de uma incursão teórica que investiga suas formas de exceção tecno-biopolítica e as possibilidades de invenção de existências para as PVHIV