A Madonna e a memória do hiv

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Este texto provavelmente vai soar anacrônico, mas não é.

Sim, eu fui um viadinho dos anos noventa que ficou empolgado ao ver Na Cama com Madonna. Eu vi o Girlie Show no especial de final de ano da Globo e por muito tempo guardei um copo do show – que não fui – dado por uma prima – que também não foi – que ganhou de um amigo dela.

Sim, eu tenho mais de quarenta anos.

A gente naquela época tinha visto O Portador na Globo e ficado assustado. O Documento Especial sobre a tal da “aids”.  A gente tinha chorado com a Maria Callas do Filadélfia e sonhado com uma bitoca honesta entre o Tom Hanks e o Antonio Banderas.

A gente tinha pouco.

Lá nesse tempo, a Madonna estava ganhando muita grana. Pra quem não sabe, ela era uma espécie de Beyoncé que vendia mais discos e efetivamente ela se comprometia com uma pauta gênero-sexual. Como eu disse, tudo isso é meio anacrônico e nossa gata vive sendo cancelada, nesses dias tão mais atentos à branquitude bilhardaria que ela ostenta.

A Madonna, aquela, tinha perdido amigos por causa do hiv, tinha namorado homens que tinham hiv. No documentário Na cama com Madonna, ela reza antes de um show, quando Keith Haring morre (em decorrência da aids). A gente via aquilo.  Se a gente olhar direito, no mesmo documentário há dois bailarinos vivendo com um hiv (pra conhecer mais deles, CLIQUE AQUI) – Gabriel e Carlton (sim, eu sei os nome de cabeça). O Gabriel é um das cenas do “french kiss”, basicamente o primeiro beijo de língua entre homes a que tive acesso na vida. Latino, ele morreu poucos anos depois (sim, os lances do hiv da época). O Carlton dançou em várias turnês e foi um ídolo de minha puberdade sexual afoita. Há pouco tempo, declarou que vivia com hiv (e vive) desde aqueles tempos. Lindos, os dois.

O tempo passou rápido pra todos nós.

Agora a gente dá uma piscada e vai a 2023. A Madonna quase morreu de sepse e ela mesma começou uma turnê, a Celebration. No primeiro dia, a gente leva uma surpresa: ao cantar Live to Tell (uma dessas baladinha  românticos que a gente ouve amando e corado), eis que aparecem muitas imagens. De muita gente. De muita gente talentosa, medíocre, linda, feia, doce, amarga, cis, trans. De muita gente mesmo.

No dia seguinte, soubemos que a Madonna tinha feito uma colaboração com o The Aids Memorial, uma página no instagram que recupera a tradição dos memoriais sobre as mortes (muitas vezes, silenciosas) da epidemia (CLIQUE AQUI  e conheça). O projeto é lindo. Então, estávamos todos lá naquele dia, e ainda estamos – porque a turnê não acabou – lembrando: da Madonna, daquelas pessoas, das lutas delas e de seus afetos.

No princípio e no final, é de memória de reinvenção dela que, também com a Madonna, a gente vive.

Por Atilio Butturi Junior

professor da UFSC – do Programa de Pós-Graduação em Linguística e do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC –  e coordenador do projeto “É só mais uma crônica”. Pesquisa o  “dispositivo crônico da aids” (termo que cunhou) desde 2015. Está interessado em produzir saber e política sobre hiv e em pensar uma análise neomaterialista dos discursos.

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