O ativismo em tempos de rede

Não obstante os êxitos de ONGs como a ABIA e o GAPA, alguns pesquisadores  notam, na última década, o esvaziamento de pessoal voluntário na ONGS, inclusive naquelas institucionalmente fortes. Para esses estudiosos, haveria uma perspectiva de que a epidemia teria se “banalizado”, sugerindo um sentido de crise no ativismo em torno do hiv e da aids, aquilo que o antropólogo Didier Fassin nomeia de “anestesia política”: um estado que nos torna insensíveis ao destino dos outros, principalmente por fazer com que esses outros pareçam incompreensíveis para nós, em um cenário em que nem comunidade nem reciprocidade são possíveis. Contra essa impossibilidade declarada ou presumida, o propósito de Didier é afirmar o princípio da inteligibilidade e fornecer um meio para um tipo de entendimento no qual os outros sejam totalmente levados em consideração – um entendimento baseado em um senso de destino compartilhado.

 

Entretanto, embora haja o esvaziamento institucional, é possível identificar múltiplas resistências sendo construídas, assim como o fortalecimento do diálogo e da reflexão acerca de formas de ampliar a articulação e o trabalho em conjunto com múltiplos movimentos sociais – indígenas, mulheres, os negros e negras, as pessoas LGBT. 

 

Tomo então esses deslocamentos para pensar nos discursos sobre os novos ativismos, principalmente aqueles instaurados pela internet, já que outros tantos pesquisadores têm assumido tanto a interseccionalidade quanto os discursos on-line como lugares para se inteligir a pandemia da aids. Para eles, a mídia digital é agora um espaço de tensionamento e de invisibilização.

 

Vejamos, então: estamos diante de um problema duplo, que se refere ao esvaziamento das práticas ativistas tradicionais e à barreira, no caso da aids, de visibilização nas redes sociais. É nesses limites que a web 2.0 permitirá além de uma atualização da memória dos ativismos e da história do enfrentamento do hiv/aids, mudanças nas políticas e práticas relacionadas à saúde. Alguns pesquisadores chegam a afirmar que existe um movimento de “cidadania bio-digital” (VEJA AQUI UM EXEMPLO): uma reconceituação do “ativismo” para refletir mais adequadamente o funcionamento da política e do poder na era digital, em que a agência dos cidadãos e as esperanças de tratamento são centrais. Para eles, essa forma de ativismo opera principalmente naqueles que se identificam com base em condições genéticas ou outras condições biologicamente definidas, os quais foram capazes de construir comunidades e compartilhar narrativas de doença, tratamento e recuperação, além de atrair fundos e fazer lobby para pesquisas.

 

Nos anos noventa, isso que se denominou ciberativismo ganhava notoriedade e, no caso do ativismo em torno do hiv e da aids as prioridades estavam começando a mudar durante um período correspondente à crescente penetração da mídia digital, mas antes do advento das mídias sociais. Se antes os sujeitos ligados aos movimentos ativistas buscavam inaugurar uma nova onda de lutas pela democratização nas ciências biomédicas e na saúde e eram menos uma forma de resistência e mais uma forma para troca de informações e incentivo à mudança de comportamentos, as transformações da chamada web 2.0 e o desenvolvimento das mídias sociais deu lugar a novas formas de resistência que passaram a perfazer os discursos ativistas, principalmente aqueles que adensam novas formas de política e que têm lugar nas redes sociais, a partir das transformações tecnológicas – notadamente, os smartphones.

 

Cait McKinney, que trabalha na Escola de Comunicação da Simon Fraser University, enfatiza que a interação via Internet foi imediata, pois relativamente barata para os produtores de conteúdo marginalizados acessarem em comparação com a transmissão ou impressão, acessível para amadores e fundamentalmente colaborativa, era uma tecnologia adequada para produzir e circular rapidamente informações sobre o hiv quando o acesso pelos canais tradicionais era precário, desigual e lento.

 

Em solo nacional, o boletim nº 64 de maio de 2019, da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA, 2019) traz questões apropriadas ao debate: como a tecnologia e os novos recursos digitais podem servir aos fins políticos de que a resposta ao hiv carece? Como manter o comprometimento com mobilização social e política, em tempos em que doença passa por uma fase de naturalização? Para responder a essas inquietações, o boletim mostra que as articulações em rede ganham destaque não apenas pelas formas de comunicação, mais ágeis, mas pela possibilidade de outras articulações no campo de políticas e ações justas para o controle da epidemia, entre elas, a prevenção. Para Fernando Seffner, professor da UFRGS e que assina o primeiro texto do boletim, trata-se de uma estratégia interseccional:

A ordem pública contemporânea no Brasil está muito marcada pelo racismo, pela xenofobia, pela homofobia, pelo machismo e pelo sexismo. Todos estes ismos podem produzir vulnerabilidade à AIDS. As culturas juvenis podem encontrar na comunicação digital lugares para conversar sobre o racismo que sofrem, o preconceito homofóbico que lhes atinge, a violência machista ou sexista. E podem encontrar nesse diálogo elementos para prevenção à AIDS.

 

Nesses discursos documentados pelas redes, é necessário atentar ainda para a produção subjetiva dos ativistas que vivem com hiv. Como já demonstrei em outros escritos, percebo conjuntos agonísticos de associação e luta e que demandam pensar numa tenocvida e numa tecnosubjetividade. No caso deste texto, vale destacar o descentramento das novas formas de política ativista que têm lugar com a web 2.0 e que se adensam nas redes sociais a partir das transformações tecnológicas. 


No entanto, na agonística constitutiva dos processos tecnobiodiscursivos, é mister destacar que as mesmas tecnologias e plataformas digitais produzem, reproduzem e reificam o pânico moral e espalham desinformação, discriminação e violência: há os negacionistas da doença se reúnem online, fazendo circular discursos divergentes da ciência convencional, encorajando comportamentos de exposições desnecessárias e morte prematura. No entanto, essa postura não fica restrita às plataformas digitais. Novamente, para além da potência de ruptura, os discursos sobre o hiv e a aids estão inseridos num jogo polivalente de produção de modalidades de vida, sobretudo quando reinscritos nos discursos midiáticos, como mostrou Atilio em outro texto publicado aqui no ESMUC (CLIQUE AQUI).

Por Camila de Almeida lara

Doutora em Linguística (Universidade Federal de Santa Catarina) e graduada em Línguas e Literaturas de Língua Portuguesa e Inglesa. atualmente, realiza pós-doutorado no programa de pós-graduação em linguística da ufsc. Seus estudos situam-se no âmbito geral da Linguística Aplicada Contemporânea e têm como tema principal a arqueogenealogia foucaultiana, especialmente o discurso, a biopolítica e à produção de subjetividades. Especificamente, suas pesquisas recentes baseiam-se em discussões sobre os dispositivos da aids e têm como objetivo  problematizar a vida  a partir de uma incursão teórica que investiga suas formas de exceção tecno-biopolítica e as possibilidades de invenção de existências para as PVHIV

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