Afinal, estamos felizes?

Muito se fala, atualmente, nos discursos sobre hiv, acerca da possibilidade desse viver bem com o vírus, sobretudo a partir do desenvolvimento da TARV.  Há discursos frequentes que buscam destacar a carga viral indetectável como um aspecto positivo decorrente da medicação. No entanto, historicamente, a aids esteve relacionada a um intenso descontentamento, tanto por parte da sociedade quanto dos próprios infectados pelo vírus.

O ACT UP, grupo que entre os anos 1980 e 1990 enfrentou discursos dominantes e mobilizou a sociedade contra os estigmas da doença, é a personificação desse coletivo de descontentes com a situação em que estavam. Entende-se a importância dos movimentos para combater o estigma e o preconceito ainda muito presentes na sociedade brasileira; no entanto, penso que é justamente o sentimento de frustração que talvez alimente o desejo por luta e justiça. Afinal, não é porque a aids é uma infecção sexualmente transmissível, discursivamente muito associada às questões homossexuais, que ela deva ser uma doença incurável. Portanto, é justamente a travessia entre o estado crônico para o estado de cura que este texto vislumbra: ainda que seja enquanto possibilidade.

De acordo com as Diretrizes para o cuidado das pessoas com doenças crônicas nas redes de atenção à saúde e nas linhas de cuidado prioritárias, documento publicado no Ministério da Saúde em 2013, o conceito de doença crônica é caracterizado como uma condição marcada por um início gradual, de prognóstico incerto, com duração longa ou indefinida. Segundo a diretriz, as doenças crônicas apresentam curso clínico que muda ao longo do tempo, com períodos de agudização e podendo gerar incapacidades. O documento ainda diz que elas “[…] requerem intervenções com o uso de tecnologias leves, leve duras e duras, associadas a mudanças de estilo de vida”. As tecnologias a que as diretrizes se referem estão associadas às relações (tecnologias leves), aos saberes estruturados (leve duras) e aos recursos materiais (duras). Sendo assim, resta-nos a pergunta: o que significa viver cronicamente com o HIV?

Longe de tentar responder a essa pergunta, volto-me para a atuação histórica do ACT UP para refletir. Os membros do grupo, que se originou em Nova Iorque, mas depois se expandiu, invadiam eventos científicos e protestavam em frente às sedes do governo, denunciando a sorofobia a que estavam sujeitos. Yasmin Sanches, em texto publicado no portal do PET-RI da PUC – SP, em 2021, reflete bem sobre essa questão. Ela lembra que em outubro de 1988, ocorreu uma manifestação em que a Food and Drug Administration, agência federal de saúde estadunidense, foi fechada. Os manifestantes exigiam a disponibilização dos remédios para o tratamento da aids. A estrada e as portas que davam acesso para a agência foram bloqueadas por quase 1500 manifestantes, alguns usando jalecos cobertos de sangue, outros levando lápides ironizando a atuação das agências de saúde. Já em dezembro de 1989, os membros do ACT UP interromperam uma missa do cardeal John O’Connor na Catedral de São Patrício, Nova Iorque, com o intuito de confrontar a posição do cardeal em não querer educação sexual e ir contra a distribuição de preservativos para a população.

Cabe pensar e se inspirar na memória de militância do ACT UP para construir novas formas de lutar e resistir às imposições do dispositivo que normalizam sujeitos e limitam suas possibilidades. A TARV foi necessária para chegarmos até aqui. Agora, cabe às próximas gerações e àquela que existe aqui e agora a tentativa de ultrapassá-la para algo melhor.

Por Arthur Anorozo Nunes | autor convidado

MÚSICO, PROFESSOR E DOUTOR EM LINGUÍSTICA PELA UFSC.

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