O The Aids Memorial e as formas de contar as epidemias

As epidemias vêm acompanhadas, na maior parte das vezes, por uma centralização dos dizeres, por uma espécie de monopólio médico dos corpos e das vidas. Aconteceu com doenças tão distintas quanto a tuberculose ou a sífilis e, mais recentemente, com a Covid-19. No caso da epidemia causada pelo hiv, um texto de Paula Treichler, de 1987, foi central para entendermos que havia duas epidemias, ambas marcadas nos corpos: a primeira, digamos, física; a segunda, que ela chamou de “epidemia de significação”, responsável por produzir estigmatização, sobretudo para pessoas gênero-dissidentes, para pessoas racializadas, para pessoas não-brancas.

Se o texto de Treichler reverberou fortemente, até chegar aos documentos oficiais e aos livros que falam da “terceira epidemia”, os esforços de falar sobre o hiv e a vida com hiv foram sendo inventados politicamente. Assim, se a epidemia de hiv ficou marcada pela luta de visibilização das pessoas, elas também passaram a disputar o espaço público e a exigir uma autonomia na produção de suas memórias. É assim que, por exemplo, nos Estados Unidos da América, apareceu o Names Project, criado para nomear e homenagear aqueles e aquelas que tinha sido vitimadas, dando a todas essas pessoas uma condição mínima de cidadania que de várias formas lhes fora negada.

Mais atualmente, um projeto intitulado  The Aids Memorial (2019), surgido em 2016 e que tem como materialidade de inscrição principal o Instagram (CLIQUE AQUI E CONHEÇA), retoma essa memória de resistência e de inscrição pública. Stuart, escocês cuja identidade permanece desconhecida, criou a página em abril de 2016. A ideia central era que as pessoas poderiam enviar e-mails com fotos e depoimentos para lembrar daqueles que amaram. No último ano e mais exatamente nas últimas semanas, o Brasil conheceu de perto o projeto, mesmo sem o saber. Com a vinda de Madonna, em Copacabana apareceram personagens da história brasileira do hiv, desde as mais célebres – Betinho, Sandra Bréa, Caio Fernando Abreu, Cazuza, Renato Russo, Henfil – até aquelas pessoas anônimas que tiveram sua imagem e sua vida vista, viabilizada e reinscrita nos telões.

Mais do que um adendo a qualquer show, a página hoje conta com mais  de 291 mil seguidores e quase 12 mil postagens.  Numa espécie de micro-narrativas on-line, o que está em questão é uma inversão dupla: ao invés de vidas extraordinárias e midiáticas, aquelas de pessoas comuns; ao invés de enunciados unicamente pessoais e afetivos, uma luta em que se resiste e se descreve a exceção biopolítica. Materializados no Instagram, esses enunciados vão ganhar os efeitos de um enquadramento imagético-verbal e político, nos moldes propostos pela filósofa Judith Butler, em Quadros de Guerra. Em seu funcionamento, os posts parte do discurso da intimidade e do privado, que solicitam outros enunciados de memória subjetiva e política, que não o da doença e do estigma. Essa vidas e suas narrativas reduzida insistem justamente em dizer sobre estar vivo, sobre ter vivido: existências plenas, que resistem ao terror, ao espetáculo e, no limite, ao desaparecimento e ao silêncio

A relação entre a narrativa de uma história de vida e narrativa de lutas micropolíticas, como funcionamento discursivo, possibilita que o The Aids Memorial inscreva não apenas homossexuais e pessoas trans em suas memórias; a página dá a ver toda sorte de existências em cujas narrativas o hiv teve seus efeitos.

As imagens e os posts, em sua força afetivo-política, solicitam outros enquadramentos para as vidas soropositivas: que partam da precariedade e que possam se enunciar, que permitam o luto público, que evoquem a cidadania e ressignifiquem as existências antes inscritas na injúria.

 

Por Atilio Butturi Junior

professor da UFSC – do Programa de Pós-Graduação em Linguística e do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC –  e coordenador do projeto “É só mais uma crônica”. Pesquisa o  “dispositivo crônico da aids” (termo que cunhou) desde 2015. Está interessado em produzir saber e política sobre hiv e em pensar uma análise neomaterialista dos discursos.

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