




Em 2019, enquanto realizava entrevistas com mulheres que viviam com hiv para minha tese de doutorado, ouvi muitos discursos que se referiam à maternidade. Naquele universo repleto de escolhas, renúncias e amor, alguns enunciados desse grande campo discursivo diziam respeito a uma prática que até então era interditada às mulheres com quem conversei, a amamentação.
Em seus discursos, o impedimento de um gesto milenar e que exprimiria uma lógica da maternidade (como explica Elisabeth Badinter, filósofa francesa) era índice de sofrimento e, por isso, Mariana narrava esse processo da forma que recupero abaixo:
Mariana: […] depois do parto eu ainda ficava chorando muito porque ele chorava de fome, eu chorava de angústia mesmo, né?!, que eu acho, que não sei eu acho que a maioria das mulheres que que passam por isso, devem ter essa essa ferida, né?!, que não pode amamentar e tal, fica um pouco diferente, né?!, imagina toda mulher quer pegar o filho, poder amamentar e eu já tava sofrendo com isso.
Mariana não havia amamentando mesmo estando indetectável pois os protocolos de saúde do Brasil contraindicam a amamentação para pessoas vivendo com hiv – independente da carga viral – devido ao risco da transmissão vertical. A orientação por aqui é que se utilizem substitutos do leite materno.
Entretanto, boas novas estão surgindo. Em maio deste ano, a Academia Americana de Pediatria fez uma mudança considerada histórica nas suas diretrizes ao permitir a amamentação por pessoas que vivem com hiv, desde que tenham carga viral indetectável de forma sustentada.
De acordo com essa nova recomendação (ACESSE AQUI), a chance de transmissão quando a pessoa faz uso da terapia antirretroviral e apresenta uma taxa viral inferior a 50 cópias por ml de sangue é menor que 1%. Por isso, os especialistas optaram por autorizar que pessoas nessas condições e que desejem amamentar possam fazê-lo.
Contudo, a recomendação ainda frisa que a prática pode trazer riscos e que evitar o aleitamento é a única forma de eliminar a chance de contágio. A entidade também enfatiza que a amamentação não deve ocorrer se a pessoa que deseja amamentar não estiver tomando corretamente os medicamentos.
Como falei acima, no Brasil, a prática ainda não é indicada. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) afirmou, em nota reproduzida pelo site Agência Aids, que “em harmonia com seu Departamento Científico de Aleitamento Materno, [a SBP] segue alinhada às diretrizes do Ministério da Saúde do Brasil e às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo essas diretrizes, a amamentação por mães vivendo com HIV é contraindicada devido aos riscos de transmissão do vírus para o bebê. Neste sentido, a SBP mantém a recomendação vigente até que novas evidências, derivadas de estudos controlados e randomizados, possam justificar uma atualização das práticas atuais.”
Hoje, por aqui, as opções de alimentação que eliminam o risco de transmissão do HIV são a fórmula láctea infantil, que é fornecida pelo SUS até que o bebê complete 6 meses de vida, e o leite humano pasteurizado de doadores.
Por fim, o desejo do ESMUC é que as pesquisas continuem e que todas as pessoas vivendo com hiv tenham ainda mais chances de fazer escolhas, seja para amamentar – como era o desejo de Mariana – ou quaisquer outras que impliquem nas formas como escolhem seguir suas vidas!
Por Camila de Almeida lara
Doutora em Linguística (Universidade Federal de Santa Catarina) e graduada em Línguas e Literaturas de Língua Portuguesa e Inglesa. atualmente, realiza pós-doutorado no programa de pós-graduação em linguística da ufsc. Seus estudos situam-se no âmbito geral da Linguística Aplicada Contemporânea e têm como tema principal a arqueogenealogia foucaultiana, especialmente o discurso, a biopolítica e à produção de subjetividades. Especificamente, suas pesquisas recentes baseiam-se em discussões sobre os dispositivos da aids e têm como objetivo problematizar a vida a partir de uma incursão teórica que investiga suas formas de exceção tecno-biopolítica e as possibilidades de invenção de existências para as PVHIV.