Durante a 25ª Conferência Internacional de AIDS, que ocorreu esse ano em Munique, a ICW (Internacional Community of women living with hiv, em tradução literal Comunidade Internacional de Mulheres vivendo com hiv) apresentou um novo relatório Confronting Coercion: A global scan of coercion, mistreatment and abuse experienced by women living with HIV in reproductive and sexual health services (Uma análise global da coerção, maus-tratos e abusos sofridos por mulheres vivendo com HIV em serviços de saúde reprodutiva e sexual). O relatório ilustra as formas como as mulheres que vivem com o hiv enfrentam práticas que minam a sua autonomia corporal.
De acordo com o site da ICW (ACESSE AQUI), o documento combina evidências de 23 implementações do Índice de Estigma 2.0 que exploram experiências de coerção, maus-tratos e abuso nas vidas de 26.502 mulheres vivendo com hiv e mulheres de populações-chave em todo o mundo de mais de 60 países em 3 regiões e oferece ações concretas para a redução de práticas coercivas.
Nesse texto, o ESMUC recupera parte do Relatório (ACESSE AQUI A VERSÃO EM INGLÊS) (que têm versões em inglês, espanhol, francês e russo) para explicar o que é a coerção reprodutiva e como ela se dá em corpos de mulheres cis vivendo com hiv.
Antes, é importante lembrar que as redes de mulheres e seus aliados têm documentado, conscientizado e trabalhado para eliminar a esterilização forçada ou coagida em mais de 40 países em todo o mundo. Esse importante trabalho de advocacy e conscientização provocou a condenação global dessa prática, entretanto, em alguns casos, criou-se a impressão de que as violações de direitos dessa natureza estavam sendo adequadamente tratadas ou eliminadas. No entanto, a violência obstétrica e a coerção continuam a ser sistêmicas e sistemáticas em relação às mulheres vivendo com hiv e ainda há obstáculos significativos para a denúncia e o acesso à justiça.
O documento indica ainda que o grande foco nas experiências de esterilização forçada ou coagida no discurso público mascarou parcialmente o espectro mais amplo de práticas coercitivas e maus-tratos sofridos por mulheres vivendo com hiv ao longo do processo contínuo de cuidados sexuais e reprodutivos. Esses tipos de práticas coercitivas, muitas vezes negligenciados, incluindo a coerção com relação às escolhas contraceptivas, opções de métodos anticoncepcionais e alimentação infantil, também constituem violações dos direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à saúde e os direitos à autonomia, integridade corporal, escolha reprodutiva, consentimento informado e direitos a serviços disponíveis, acessíveis, aceitáveis e de qualidade.
Todas as pessoas, independentemente do gênero, da sexualidade ou do status de hiv, têm o direito a serviços de saúde sexual e reprodutiva livres de julgamento e discriminação, a tomar decisões autônomas sobre se e quando ter um filho, à autonomia corporal e ao direito ao consentimento informado. Isso significa que todos os indivíduos devem receber informações precisas, em uma linguagem compreensível, sobre os riscos e benefícios do tratamento, serviços, cuidados e opções de apoio disponíveis para eles. Além disso, eles devem ter tempo para entender essas opções e seus direitos a fim de tomar a decisão que for melhor para eles, sem coerção, pressão ou força. Infelizmente, para muitas mulheres vivendo com hiv, esses requisitos básicos não são atendidos.
Mas enfim… o que é coerção?
Coerção é a pressão indevida para tomar uma decisão específica ou aceitar um tratamento ou serviço específico que as pessoas podem não escolher, querer ou achar que é de seu interesse de forma autônoma, ou sem acesso a informações precisas e imparciais.
A coerção pode assumir a forma de pressão para tomar uma determinada decisão ou aceitar determinados tratamentos ou serviços que um indivíduo não quer, pode não se sentir à vontade ou não tem informações suficientes. Essa pressão pode surgir de dinâmicas de poder desiguais ou do paternalismo no ambiente de assistência médica. As mulheres podem ser informadas, persuadidas, ameaçadas ou enganadas para fazer algo ou aceitar um tratamento, prática ou medicamento que talvez não queiram ou com o qual talvez não teriam concordado se tivessem sido orientadas sobre suas opções ou se tivessem recebido informações precisas. Essa pressão pode vir na forma de comentários negativos ou julgamentos, tentativas persistentes ou repetitivas de persuadir um indivíduo, bullying ou ameaça, e retenção de informações sobre os riscos e benefícios de opções alternativas. Ela também pode vir na forma de incentivos, como a oferta de benefícios específicos – nutrição, serviços ou apoio financeiro – ou na forma de reter o tratamento ou o acesso ao apoio ou aos serviços necessários até que a mulher concorde com os serviços ou o tratamento.
O Relatório apresenta então as categorias de práticas coercitivas e abusos que foram registradas nas entrevistas com as 26.502 mulheres vivendo com hiv:
Tipos de coerção
As práticas coercitivas dos profissionais e da equipe de saúde, conforme vivenciadas pelas mulheres vivendo com hiv, podem ser categorizadas da seguinte forma:
– Aconselhamento para não ter um filho; orientação para não ter filhos ou para não ter outro filho;
– Aconselhamento para interromper a gravidez;
– Pressão ou incentivo para se submeter à esterilização;
– Esterilização sem conhecimento ou consentimento;
– Negação de contracepção;
– Pressão para usar um tipo específico de método contraceptivo;
– Informação de que não havia alternativa ao uso de contraceptivos para obter tratamento antirretroviral e/ou outras formas de assistência médica;
– Pressão para usar um método específico de nascimento/parto (por exemplo, cesariana ou parto vaginal);
– Pressão para usar uma prática específica de alimentação de bebês (por exemplo, aconselhamento para não amamentar) (Para saber mais sobre amamentação acesse esse outro texto do ESMUC);
– Pressão para fazer um exame de Papanicolau;
– Pressão para fazer um exame vaginal;
– Pressão para se submeter a corte/mutilação da genitália feminina.
Essas categorias representam os tipos de práticas mais comumente relatadas e foram as capturadas na pesquisa que embasou o documento. Entretanto, essa lista não é exaustiva e pode haver outras experiências de coerção não discutidas no relatório.
Os maus-tratos e o abuso sofridos pelas mulheres vivendo com hiv também podem ser predominantes e eles reforçam as desigualdades de gênero e representam violações da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e meninas.
O ESMUC continua na luta para que todas as pessoas que vivem com hiv tenham autonomia para gerenciar suas vidas e seus corpos!
Vamos juntas?
Por Camila de Almeida lara
Doutora em Linguística (Universidade Federal de Santa Catarina) e graduada em Línguas e Literaturas de Língua Portuguesa e Inglesa. atualmente, realiza pós-doutorado no programa de pós-graduação em linguística da ufsc. Seus estudos situam-se no âmbito geral da Linguística Aplicada Contemporânea e têm como tema principal a arqueogenealogia foucaultiana, especialmente o discurso, a biopolítica e à produção de subjetividades. Especificamente, suas pesquisas recentes baseiam-se em discussões sobre os dispositivos da aids e têm como objetivo problematizar a vida a partir de uma incursão teórica que investiga suas formas de exceção tecno-biopolítica e as possibilidades de invenção de existências para as PVHIV