No dia 9 de setembro de 2024, o Grupo de Apoio à Prevenção a Aids de Santa Catarina, GAPA/SC recebeu uma notícia aterradora: dada o avançado estado de deterioração de suas estruturas, a instituição teria de desocupar sua sede, cedida pelo governo do estado de Santa Catarina, localizada nos altos da Rua Felipe Schmidt, tendo-se como prazo máximo quinta-feira, dia 12 de setembro.
O AA, que fica alguns metros distantes, cuja sede também é cedida pelo governo do estado de Santa Catarina, ofereceu uma de suas salas para que o GAPA deixasse seu mobiliário, arquivos e pertences e ofereceu também seu espaço para que, provisoriamente, as reuniões semanais do grupo de apoio – atividade importante e consolidada do GAPA – seguissem acontecendo.
Na quarta e na quinta-feira, dias de péssima qualidade do ar em Florianópolis por conta das queimadas que tomaram o país, foi possível ver a diretoria e os usuários do GAPA, e um grupo de voluntários, carregando caixas, cadeiras, geladeiras, computadores, arquivos, às vezes nos braços, às vezes em um carrinho de supermercado, e aglutinando esses pertences no pequeno e provisório espaço. A cena destoava da nova realidade, gentrificada, da região.
Não foram dias fáceis, a sede do GAPA tem grande significado para muitos, tanto trabalhadores, quanto usuários e/ou voluntários que viram o espaço do GAPA como apoio e refúgio em momentos de sofrimento e solidão.
Ainda que as atividades humanas seguissem em seu ritmo e sua força motriz de combate ao estigma e acolhimento à vida com hiv, com a realização de grupos de apoio, ações de prevenção, um bazar de captação de recursos para a instituição e, inclusive, uso do espaço por outros coletivos e instituições de direitos humanos, em um regime de aliança, a deterioração contínua da sede do GAPA se avolumou a olhos vistos com o passar dos anos. Um misto de descaso público e precarização dos GAPAs que se repete em diversas cidades do Brasil.
Considerando as lutas que o GAPA de Florianópolis atualmente trava para manter suas atividades, este texto, escrito a quatro mãos, também uma aliança entre o É só mais uma crônica e o GAPA/SC de Florianópolis, percorre duas trajetórias: a primeira versa sobre importância presente e histórica da organização para a vida com hiv, em nível local e nacional; e a segunda, consiste em um convite, um chamado, uma convocação para a comunidade florianopolitana somar na construção da entidade e rearticulação de suas atividades.
Conhecendo a história e as ações da instituição
Vamos retroceder um pouco. Pensarmos sobre formação do GAPA, a primeira instituição de base comunitária, não governamental do Brasil e da América Latina a oferecer informações contundentes, respostas, ativismo político e amparo para a vida com hiv e o convívio com vírus na emergência da epidemia, e refletirmos sobre sua atuação consistente ao longo das décadas, tudo isso requer um deslocamento no espaço e no tempo. Voltamos, então, à cidade de São Paulo e ao ano de 1985, quando um grupo multidisciplinar de profissionais da medicina, antropologia, professores, sociedade civil e PHIV organizaram-se como agentes críticos em uma instituição cuja sala, cedida pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, ficava em frente ao Hospital das Clínicas. O grupo tinha como objetivos “atualização, discussão, difusão de informações sobre a doença, entre outros”, como diz a sua ata, publicada do Diário Oficial da União em 28 de maio de 1985.
Retornar à década de 1980 quando falamos de hiv é uma incursão difícil. É preciso fazê-lo com delicadeza. Naquela época, foi apenas com certa lentidão que o conhecimento sobre o vírus foi produzido e, na falta de informações, o que proliferaram foram temores, estigma e preconceitos – nunca é demais lembrar, no contexto estadunidense, da categoria “doença dos 5H” para referir-se à infecção pelo hiv, com “Hs” correspondentes a “homossexuais”, “heroinômanos”, “hemofílicos”, “haitianos” e “hookers”, em português, trabalhadoras/es sexuais.
Naquele momento, quem era diagnosticado com HIV e vivia um quadro de aids recebia tratamento pouco eficaz em isolamento de sua família, amizades e amores. A conjuntura brasileira do princípio da epidemia também era assombrosa: fase final da ditadura civil-militar, grave crise sociopolítica e econômica, aparelhos estatais fragilizados, sociedade civil desarticulada pela perseguição política do regime, criando várias barreiras de acesso a tratamento e informação, que assombram quem vive com hiv até os dias de hoje.
Não é mais este o momento. Viver com hiv no Brasil contemporâneo é contar a possibilidade universal de tratamento antirretroviral e experimentar uma doença crônica altamente manejável. Não obstante essas condições, a epidemia é diversa e multifacetada e o acesso à diagnóstico e ao tratamento está diretamente atravessado por marcadores como empobrecimento, racialidade, diferenças de gênero e sexualidade e condições que fazem com que incidam diferenciais de precarização, questões que, por sua vez, impedem o acesso ao cuidado e à saúde.
Considerando-o, falar do GAPA é falar do momento presente e também falar de uma história importante das quatro décadas de epidemia das quais a instituição materializa uma memória de articulação comunitária, respostas rápidas e éticas, formas de prevenção e crítica e políticas sociais. Falar do GAPA também é falar de estratégias comunitárias de encontro e aliança com populações que encontram barreiras no acesso à informação, prevenção e cuidado em saúde.
Vamos seguir nesta viagem espaço-temporal e aportar em Santa Catarina, Florianópolis. Em 1986, foram relatados os primeiros casos da síndrome da imunodeficiência, no Hospital Nereu Ramos e, em 1987, o GAPA/SC foi constituído a partir de articulação com o GAPA/BR/SP, formulando-se um estatuto coerente com a realidade local de Santa Catarina. Como as contas indicam, a constituição dos GAPAs BR e SC antecede a criação do Sistema Único de Saúde Brasileiro, e, como falamos alguns parágrafos acima, se dá em uma conjuntura de um serviço público de saúde precário em vias de estruturar-se com a redemocratização.
Suas primeiras ações já eram voltadas à prevenção e redução de danos da epidemia, ao assessoramento das campanhas estaduais e ao amparo e cuidado das pessoas que vivem e convivem com hiv, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade social, práticas que têm sido sistematicamente mantidas ao longo das décadas de atuação da ong.
A ideia não é fazer deste texto uma descrição exaustiva do histórico e das linhas de atuação do GAPA – coisa que demandaria outros e outros textos. Fiquemos apenas com alguns destaques de projetos, como a casa de apoio “Lar Recanto do Carinho”, criada em 1992, para atender a crianças soropositivas e filhos de PHIV e, em seguida, a criação de uma segunda casa de apoio, voltada ao abuso de álcool e drogas, o “Recanto da Esperança”.
De lá, um corte para o presente, passamos a falar de ações contemporâneas, como o projeto GAPA na rua – ações de base, prevenção combinada e diagnóstico precoce, contemplado pelo programa Fast-Track Cities da Unaids, com o objetivo de disseminar informações relevantes sobre prevenção combinada para populações-chave e incentivar o diagnóstico precoce do HIV para populações de maior vulnerabilidade, estimulando também a adesão ao tratamento antirretroviral. Só nesse projeto, a ONG realizou 21 ações com populações-chave por meio de rodas de conversa e atividades em universidades, casas de prostituição e centros de acolhimento.
Podemos também falar dos projetos Comunicação Vhiva, financiado pelo Ministério da Saúde e focado na Mandala de Prevenção Combinada do hiv e outras Ists; o projeto Maria-Maria, com ações em casas de trabalho sexual em Florianópolis; as ações com a população em situação de rua, parceria com o Pop Rua; as ações com população LGBTQIAPN+; as ações com a população surda… A lista é extensa.
Além disso, na pandemia de Covid-19, foram feitas entregas de alimentação e remédios nas casas das pessoas que vivem com HIV na cidade de Florianópolis. Somente depois de semanas nessa função é que foi feita uma parceria de ongs e prefeitura para levarem os remédios para quem não tinha condições de buscar nas policlínicas, considerando, além disso, o risco de exposição a Covid para PHIV.
Falar das ações em campo do GAPA e das políticas de assistência psicossocial é falar da garantia de direitos básicos, desde a distribuição de cestas básicas e kits de higiene, até atendimento psicológico, através de profissionais voluntários. Isso é tocar num ponto chave de sua atuação histórica e contemporânea: sua aproximação, vínculo e compromisso com as pessoas que têm seus direitos à saúde, à cidadania e à cidade violados. É a feição menos vista da epidemia e aquela que precisa de mais atenção.
Trazer a temática vida com hiv para o centro do debate, politizando este debate, não é uma tarefa simples. Parece persistir uma renitente vontade de não falar sobre, de esquecer, como se isso fizesse com que o hiv – nas diferentes formas como a infecção é vivida a partir de quem você é e onde você está – sumisse por si só.
É preciso não esquecer o que vivemos até aqui, é preciso não esquecer nossas perdas, é preciso não parar de seguir contando as estórias da vida com hiv. O grupo de apoio às pessoas vivendo com HIV que há décadas acontece toda a quarta-feira é, além de um dispositivo de escuta, troca e acolhimento, também um dispositivo de enfrentamento crítico, testemunho, cuidado mútuo, criação de vínculos e autodeterminação.
Futuro do GAPA: um convite aberto
Ter uma sede não é uma coisa menor para GAPA: diz de sua inscrição num território, suas possibilidades de acolhimento, de uma dinâmica de portas abertas para que pessoas que vivem e convivem com hiv possam encontrar-se e propor práticas e políticas de autodeterminação de base comunitária.
Neste momento, como já dissemos acima, todo o arquivo e patrimônio do GAPA está trancado em uma pequena sala na sede do AA, aguardando a possibilidade de uma futura sede, que, a princípio, será cedida pelo estado de SC.
Aí é que está a questão: para acessar esta nova sala, o GAPA precisa emitir uma negativa de débitos. Aí que está a segunda questão: como uma instituição de muitas décadas que já passou por diversas gestões, o GAPA tem algumas pendências financeiras com as quais não consegue arcar por falta de financiamentos governamentais e por falta de renda. É um imbróglio, mas nós podemos ajudar.
Este texto é uma carta aberta e dirige-se às associações e militâncias de direitos humanos, à sociedade civil, às pessoas e instituições que já conduziram pesquisas e estágios junto ao GAPA e todas alianças e parcerias que já se deram no passado e são possibilidades de futuro.
O GAPA precisa arrecadar fundos para quitar parte de suas dívidas para conseguir se mudar para a nova sede prometida pelo estado. Podemos ajudar doando, compartilhando, nos engajando com o GAPA e reconhecendo sua importância histórica e presente e sua função estratégica diante das vulnerabilidades e na construção do bem-viver diante do hiv.
Neste momento o GAPA conta com uma campanha de arrecadação que pode ser acessada no AQUI
A contribuição também pode ser feita pela chave PIX: 48 988371826 – Grupo de apoio e prevenção à aids
Mais informações sobre a instituição e suas ações podem ser conferidas no LINK
Finalmente, para conhecer a história e trajetória dos GAPAs em nível nacional, recomendamos a leitura de Gapas: uma resposta comunitária à epidemia da aids no Brasil, de autoria de Wildney Feres Contrera, disponível AQUI
Por Nathalia Müller Camozzato
professora, doutora em Linguística e graduada em Letras – Português pela UFSC. Atualmente, realizada Pós-doutoramento com bolsa FAPESC no Programa de Pós-Graduação em Linguística da ufsc. Tem buscado alinhavar a pesquisa à práticas por vidas mais vivíveis e justas para todas pessoas., especialmente aquelas vulnerabilizadas por questões como raça, gênero, sexualidade e variabilidade funcional. Entre seus interesses estão o discurso e o emaranhado entre o humano e o não/outro que humano, o pensamento localizado e as estórias como estratégia fabulativa orientada para o futuro.
Por Marília de Souza da Silveira
Psicanalista, psicóloga clínica e social. Atualmente presidenta do GAPA/SC, com mandato até 2026.