Em alguns textos do ESMUC, temos nos dedicado a pensar os vértices entre o hiv e a produção artística. Por aqui, já passaram a literatura, as artes plásticas, a música, o cinema e a televisão. Nesse universo, notamos inicialmente uma modificação entre aquilo que se produzia nos anos oitenta e noventa e o que, depois da TARV, apareceu como uma espécie de “arte crônica”.
No limite entre esses dois lugares, Adriana Bertini apareceu ao materializar o problema do hiv e do estigma em suas peças. Bertini, que se aproximou da questão do hiv por seu trabalho voluntário no GAPA, iniciado em 1994, ganhou notoriedade internacional ao criar a Condom Culture, a série de roupas e acessórios que, ao exigir uma moda não-comercial e conceitual, colocava no centro do debate artístico a prevenção e o estigma. Em entrevista à UNAIDS, em 2006, ela afirmaria: “Eu quero que minha arte seja vista em todos os lugares, lembrando às pessoas que a prevenção é necessária”.
Essa visibilidade atravessou fronteiras. Bertini não só expôs em importantes galerias, como teve seu trabalho coberto pelos mais diversos veículos da imprensa mundial. Mais tarde, expandindo seu universo, passou a trabalhar com outros artefatos caros à reposta ao hiv, como bulas, embalagens descartadas e drágeas de medicamentos. Em seus últimos trabalhos, ela reelabora o problema do hiv em relação às mudanças climáticas, levando em consideração os modos diversos pelos quais os impactos no clima serão sentidos por pessoas com vulnerabilidades específicas, como as que vivem com hiv no Sul Global.
Ora, essa bioarte (a série chama-se mesmo Bioart) parece responder às novas inquietações que temos, em nossa pesquisa teórica, levantado: que tipo de relação podemos estabelecer com os não-humanos? No caso do hiv, como pensa rum modo de coabitação a fim de colocar em xeque as metáforas bélicas e práticas que emergem de discursos de risco e de combate?
Assim, diante do material de coleta e os restos de exame, esses dispositivos tão caros ao controle e à disciplinarização da vida, nessa última série vemos brotar plantas muito verdes, banhadas não mais em sangue, mais em uma miríade de cores. Diferente de um embate ou uma guerra, estamos aqui em relações entre o vivo e o não-vivo, entre trocas e simbiose entre humanos e não-humanos, pessoas e vírus, ciência e dispositivos.
Ao que parece, Bertini sugere um deslocamento: das práticas preventivas e da centralidade da camisinha, o desejo agora recorre a outros arranjos e a outros efeitos. É como se ela novamente estivesse materializando os deslocamentos, chamando para o debate e colocando novamente a prevenção, mas em outros termos: como cuidar de si e cuidar do mundo, como cuidar de si em relação, em associações, nas fronteiras borradas que a vida crônica e medicalizada impõe, mas também naquilo que se inventa e se cria.
Como na provocação de Donna Haraway, estaríamos diante de uma “espontaneidade disciplinada”: ocupando o olhar da biomedicina, mas travando relações novas, abrindo possibilidades e recolocando a vida, em sua variedade multiespécie e em sua contingência e precariedades radicais, nos rizomas em que ela acontece.
Para conhecer mais a artista, CLIQUE AQUI e acesse o insta!
Por Atilio Butturi Junior
professor da UFSC – do Programa de Pós-Graduação em Linguística e do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC – e coordenador do projeto “É só mais uma crônica”. Pesquisa o “dispositivo crônico da aids” (termo que cunhou) desde 2015. Está interessado em produzir saber e política sobre hiv e em pensar uma análise neomaterialista dos discursos.