O Dia em Que Eu Fui Testado

Era 17 de agosto de 2015, uma segunda-feira qualquer, e eu estava indo para a aula de Antropologia das Religiões. Ou pelo menos era isso o que eu achava. Quando cheguei na esquina da faculdade, recebi a mensagem no grupo do WhatsApp: “Aula adiada!”. Um momento de alívio misturado com a estranha sensação de estar perdido, já que o que era para ser uma rotina transformou-se em um espaço vazio de possibilidades.

E foi aí que tomei uma decisão aparentemente banal, mas que mudaria tudo. Eu estava a caminho de um compromisso acadêmico, mas resolvi aproveitar o tempo livre e fazer um teste rápido de HIV, no posto de saúde perto de casa. Esse posto era bem conhecido na cidade, referência no tratamento de HIV/Aids, um local onde muitas pessoas, como eu, se dirigiam para testar sua saúde e seguir com suas vidas. O problema é que, naquele momento, eu ainda não sabia que a minha vida, como eu a conhecia, estava prestes a mudar.

Entrei no posto, entreguei meu RG para a recepcionista e fui encaminhado para a “sala de espera”, que na verdade era só um espaço improvisado perto da recepção. Tudo estava muito exposto, mas até então eu não me importava. Eu sabia, ou pelo menos achava que sabia, que ali ninguém estava realmente preocupado, que todo mundo apenas ia, fazia o teste e ia embora, já com a tranquilidade de quem não tem nada a temer.

A assistente social que me atendeu parecia tão tranquila e confiante. Fez suas perguntas com um sorriso acolhedor e, com um tom de segurança, me disse: “Fique tranquilo, você não tem risco”. E eu realmente acreditei. Eu me protegia com preservativos, estava em um relacionamento monogâmico (embora tóxico, mas quem não tinha suas inseguranças e suas escolhas questionáveis na época?), e o teste parecia ser mais uma formalidade, uma garantia de que eu estava certo, de que nada poderia dar errado. O que eu não sabia era que estava prestes a aprender, da maneira mais dura possível, que o risco nunca é algo que possamos controlar totalmente.

Fiz o teste e sentei para esperar. Vinte minutos, é o que dizem. Mas o tempo foi passando, e quando a enfermeira voltou, ela tinha um olhar diferente. “Seu sangue talhou. Precisamos refazer o exame”. Naquele momento, um fio de estranheza se esticou em meu peito. Isso não deveria estar acontecendo. Eu estava sendo o único a passar por isso, o único que teve que voltar para a sala duas vezes. As paredes começaram a se fechar, e eu sentia a ansiedade subindo como uma onda. A sala estava cheia, mas ninguém parecia perceber o que estava acontecendo comigo. Eles estavam ali para fazer o teste e seguir em frente. Eu estava preso em algo que não entendia.

A espera se arrastou. A cada minuto, minha mente corria em círculos. Eu pensei que a qualquer momento poderia perder o controle, sair dali correndo ou desabar em lágrimas. O tempo foi se arrastando e, no fundo, eu sabia que algo estava errado, mas não queria aceitar. Quando o tempo parecia já ter ultrapassado todos os limites, finalmente uma moça simpática me chamou. Ela me conduziu até a sala, e, com um gesto rápido, entregou-me o papel com o resultado.

Eu ouvi ela dizendo algo, mas as palavras pareciam vir de um lugar distante, como se o mundo tivesse parado. “Calma, vai ficar tudo bem”, ela disse, mas, ao invés de conforto, aquelas palavras me soaram como um eco frio, sem sentido. Naquele instante, algo dentro de mim se rompeu. Um turbilhão de pensamentos começou a tomar conta da minha mente. Eu tentava pensar racionalmente, mas tudo parecia fugir de mim. “Será que é o fim? Como vou continuar minha vida agora? E minha faculdade, eu vou conseguir terminar? Como vou contar para os meus pais, para a minha família? Será que eles vão me amar do mesmo jeito?”

De repente, me vi na rua. O vento me cortava a pele, mas eu não sentia nada. Me arrastei até o ponto de ônibus, sentei no chão e, sem perceber, as lágrimas começaram a cair, pesadas, como se eu estivesse chorando todos os medos que carregava. Ali, no chão frio, eu me senti completamente pequeno, como um animal ferido, rejeitado pela vida. Meu corpo doía como nunca, uma dor tão profunda que parecia não ter fim.

Mas havia algo dentro de mim que ainda estava lutando. Mesmo quando tudo parecia perdido, eu sabia que havia mais por fazer, que eu precisava agir. Respirei fundo e liguei para o meu parceiro. Eu precisava vê-lo. Precisava contar a ele, precisava dividir aquele peso. Nos encontramos. Eu mal conseguia falar, era mais choro do que palavras. E, com um alívio sufocante, o teste dele deu negativo.

Mas o martírio não terminou ali. À noite, ao voltar para casa, o peso da verdade ainda me esmagava. Eu precisava contar para meus pais. A dor de ter que dizer aquilo para eles parecia insuportável, mas, ao mesmo tempo, era a única coisa que eu podia fazer. As palavras saíram em meio a lágrimas, gritos, mas também houve algo inesperado: acolhimento. O abraço de minha mãe, o olhar de meu pai, o apoio incondicional que eu não imaginava que teria. Eles me amaram, me apoiaram, e aquilo foi a única coisa que me fez seguir em frente.

Talvez, se eu não tivesse tido esse acolhimento, eu não estivesse aqui, digitando essas palavras agora. Talvez, se eu não tivesse vivido esse momento tão devastador, eu não teria entendido o valor da vida, da família, do amor. Aquele dia foi o começo de algo novo, algo que, em meio ao caos e ao medo, me ensinou a dar mais valor ao que realmente importa.

Hoje, ao contar essa história, não consigo evitar as lágrimas. Aquelas mesmas lágrimas que caíram naquele ponto de ônibus. Mas, agora, elas são diferentes. Elas não são mais de dor, mas de gratidão. Gratidão por ter sobrevivido. Gratidão por ter aprendido a amar a mim mesmo, mesmo nos momentos mais escuros. E, acima de tudo, gratidão por estar aqui, escrevendo para você, que talvez precise ouvir que não estamos sozinhos. Que, por mais que o medo nos consuma, a vida sempre tem algo mais a nos oferecer. E é isso que eu carrego agora: a certeza de que posso recomeçar.

Por Matheus Maia Moraes | colaborador ESMUC

Comunicólogo, apaixonado por moda, cultura pop e viagens, sou um entusiasta do crossfit e vivo com HIV há quase uma década. Ao longo dessa jornada, compartilho minhas experiências e aprendizados, celebrando a resiliência, o estilo e a autenticidade. Também sou ativista, lutando por mais visibilidade e direitos para pessoas vivendo com HIV, sempre buscando inspirar e empoderar quem me acompanha.

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